segunda-feira, 7 de julho de 2014

1) O Caminho faz-se... Contemplando

Galeria completa da etapa
domingo, 6 julho
Sé de Braga - Albergue Goães
18km

Vou começar pelo fim: cheguei a casa e 'morri' na cama. 'Marinheiro de primeira viagem', é a expressão ideal para se me aplicar. 'Morri' extenuada fisicamente, mas 'ressuscitada' espiritualmente. O final desta jornada de 'míseros' 18km, provou-me que estou no Caminho certo e este é o Caminho.

A loucura de o percorrer sozinha, afinal não é mais que uma sensata e assertiva posição. Cada um é que sabe o caminho que quer (precisa) de fazer. E as razões por que senti o chamamento, ainda continuo por desvendar. A 'parvalheira' da contemplação é afinal um paraíso ao meu alcance, a proximidade maior que consigo ter do paraíso, sem necessitar de morrer e passar pelo julgamento final, na crença católica.
A mente continua a rever o filme de ontem das paisagens 'perdidas' de Portela das Cabras e de Goães, o som de pássaros que nunca escutei, o cheiro intenso a eucalipto, o sol brilhante a tentar penetrar entre altas copas, o verde luxuriante da paisagem alta e um céu azul insuspeito, neste domingo que começou chuvoso. Os canteiros de Carreiras S. Miguel, os quelhos de Lage e Moure. Brutal sentimento de felicidade.

Cheguei às portas da Sé e despedi-me do mundo como o conheço, do stress diário, das preocupações, das responsabilidades. O Caminho também pode ser uma 'desculpa aceitável' para dizerermos 'xau' a tudo isto. Fiz uma oração interior sem palavras, enquanto contemplava a antiguidade das entranhas do monumento. Pedi o meu primeiro carimbo com a ingenuidade típica de qualquer primeira vez e envergonhei-me por ser o primeiro a cair na credencial, ainda imaculada. Não me sentia ainda peregrina, mas algo estava a acontecer. 

Guardei a credencial, tirei mais duas fotos para eternizar aquele momento e parti, na maior das solidões que significava a verdadeira independência e a maturidade espiritual. "Segue as setas amarelas! Elas indicam-te o Caminho, o teu destino."

Ao início, no coração da cidade, foi divertido, qual jogo entre semáforos e automóveis, num domingo típico em Braga - cinzento e cristão. Senti-me turista na minha própia cidade e ansiosa por desaparecer dali. Depois veio a parte feia e desinteressante, a aumentar a palpitação e o ritmo do passo. "Calma, relaxa e desfruta dos detalhes", ouvia dentro de mim. Esta voz, que a passos oiço, será o quê? Um segundo nível de consciência? Sei que é a vertente mais sensata de mim. Estou a aprender a dar-lhe espaço, protagonismo e a segui-la.

O segundo carimbo surgiu num tasco medonho, mas a vontade de dar respostas fisiológicas revelou-me a primeira lição do caminho: nunca julgues pelas aparências e deixa-te surpreender. Comprei uma garrafa de água, perguntaram-me se ía para Compostela e se o fazia sozinha, e senti, pela primeira vez, o verdadeiro calor e o afeto das pessoas pelos peregrinos. Como recordação trago um carimbo de lá. Segui o Caminho, animada e renovada.

Esta mesma lição foi-me dada mais adiante quando, numa zona feia, um sujeito de aparência duvidosa me desejou 'Buen Camino!" e me sorriu. Envergonhada agradeci com o maior sorriso que tinha à mão!

Primeira paragem para comer qualquer coisa foi feita na margem de Braga da Ponte de Prado. O Sol já brilhava e salientava uma faceta da Ponte Medieval que nunca tinha apreciado. Faço questão de descobrir novas perspetivas sobre o que já me parece óbvio e conhecido. O VILA VERDE viva! também só existe e perdura porque é construído sobre essa linha.

Parti novamente e demorei-me à volta e no topo da ponte, a registar as cores magníficas do Cávado e da vida que, na margem vilaverdense, se ergue à volta dele. Também entrei numa nova fase do caminho, com sinalética renovada (que não apenas as singelas setas que me acompanharam em Braga).

De repente, um medo se apoderou de mim: "Ainda estou tão longe e já sinto cansaço. Será que aguento? Terá sido um erro assumir esta missão? A vergonha social se não conseguir e acima de tudo, pessoal..." esta sensação acompanhou-me até Moure, mas nunca me senti sozinha. Foi como se alguém mais sensato e experimentado me acompanhasse e me fosse apaziguando: "Calma, desfruta, contempla. Não é para isso que aqui estás? Vais chegar e concluir que nada aproveitaste e aí sim, o esforço terá sido em vão".

Fiz o caminho... contemplando! As partes de que mais gostei foram sempre as mais desafiantes - quando o caminho me convidou a deixar o asfalto e a enveredar por trilhos florestais; nem dei por subidas, custando mais as descidas. Ainda pensei ter trazido algo para me auxiliar nesta parte, já que aproveitei para levar quase a totalidde da carga que me acompanhará na jornada, às costas.

Foi ainda um momento especial quando conheci o meu futuro e inseparável companheiro de viagem: um pau de carvalho seco, massiço, quase da minha altura, com algumas arestas, mas macio nas zonas onde terei que lhe colocar as mãos. Olhei para ele, peguei-lhe, e reparei que já ele tinha tentado se libertar da uma parte do seu corpo. Virei-me para ele e perguntei-lhe: "Queres visitar terras que nunca imaginaste?" e ri-me. Acabei por libertá-lo de vez da parte a mais, onde estava rachado, e trouxe-o comigo. O cajado que roubei da paisagem de Carreiras S. Miguel e que me levará a Santiago de Compostela...

Entrar no Caminho de Goães foi emocionante. Uma freguesia lá no alto do concelho e que me fez querer regressar. A tarde ía alta e a ansiedade voltou a tomar conta de mim. Quando é que chego ao albergue? Depois de percorrer a pitoreca aldeia de Goães, cheguei a um edifício fechado e que parecia abandonado. O albergue estava fechado e pouco utilizado. Com um equadramento fantástico e condições excecionais, só à terceira tentativa (por falta de rede) obtive resposta de um dos números deixados no vidro da antiga escola primária local, em caso de lá se querer ficar.

Poucos minutos depois tinha o meu carimbo, falei com a D. Maria (cujo nome não me ocorreu perguntar-lhe, falha minha), que no pouco tempo em que estive lá me mostrou as instalações acolhedoras para quem lá fica e histórias fantásticas de quem lá passa, como a de um casal de jovens que se perdeu e à meia noite teve que ser resgatado pela própria "junto ao castelo" (torre de Penegate). "Coitados fiquei com pena, se fossem meus filhos também gostaria que tivessem um gesto deste para com eles", justificou a despachada senhora e adendou "quando me disseram que só tinham três dias para chegar a Santiago até fiquei com pena. Que seria deles?..." Boa pergunta...

Domingo há mais! :)

Sem comentários:

Enviar um comentário